Artistas como Paula Rego, Neo Rauch e Alex Gross, cada um à sua maneira, projetam em suas telas fragmentos de enredos possíveis, com personagens, atmosferas e tensões que sugerem arcos dramáticos, mesmo que não sejam explicitamente narrados.
É nesse território de interseções que Anuk Vardan insere sua pesquisa. Em Infiltração, a artista parte de uma investigação sobre as imagens do cinema. Apropria-se de cenas e stills, e os transpõe para a matéria da pintura a óleo. Há, no entanto, um deslocamento: elementos são adicionados, outros suprimidos, e a composição é reformulada. A imagem não é citada, é transformada. O tempo da pintura reconfigura o tempo da cena.
A narrativa ficcional que emerge dessa operação não está inscrita diretamente na tela, mas a habita — e está simbolicamente presente no jornal sobre a mesa, que também integra a pintura. Anuk confecciona esse jornal como objeto tridimensional, no qual se pode ler a entrevista com o personagem central: um engenheiro, pai de família, morador do icônico Condomínio Estrela do Sul. A entrevista é uma criação literária, escrita por Anuk como parte do universo da obra, e nela o personagem narra, de seu ponto de vista, a crise vivida no edifício. A narrativa é verossímil, mas carregada de elementos que transitam entre o absurdo e o possível. Homens que circulam com capacetes tecnológicos por não tolerarem o convívio social são uma das figuras que compõem esse cenário. Há uma certa insanidade, tratada com naturalidade, que faz ressoar os códigos da ficção científica, e que, ainda assim, parece falar diretamente de nossa realidade presente.
No trabalho de Anuk, a escrita também participa do diálogo entre pintura e cinema. O roteiro, primeiro movimento da engrenagem cinematográfica, muitas vezes transita do set para as prateleiras, publicado como texto literário. É nesse espaço que Anuk se aproxima da palavra escrita: com conhecimento técnico e familiaridade afetiva. Habituada à leitura de roteiros — em sua biblioteca há textos de Bergman, Tarantino, Mario Peixoto — e sempre atenta à carpintaria narrativa, a artista estuda suas formas, costuras visuais e tempos internos. É essa consciência aguda da construção narrativa no campo expandido da imagem que a leva a escrever a longa entrevista fictícia para Infiltração, criando uma ficção que nutre e é nutrida pela pintura.
O resultado é uma obra figurativa, que se afirma pela clareza de suas formas, mas que tensiona continuamente a lógica do real pela inserção de elementos de estranhamento e deslocamento. Aspectos lúdicos, com contornos ambíguos, atravessam as cenas — como se algo ali estivesse sempre por acontecer, ou por colapsar. Os objetos, o jornal, a entrevista, a arquitetura, os personagens-bolha: tudo sugere que a imagem pertence a algo maior, uma narrativa em curso. Esses elementos não operam como adereços; funcionam como pistas simbólicas de um mundo que pulsa além da moldura da pintura. Como fizeram Bruegel e Bosch em suas obras, Anuk também semeia signos que convocam o olhar a decifrar — fragmentos de um código narrativo que resiste à leitura imediata. Infiltração parte do cinema, encontra forma na pintura e retorna, pela trama narrativa, ao território da ficção — amalgamando tempos, linguagens e suportes. É um circuito. A imagem, aqui, é instância viva — permeável ao tempo, à ficção e à linguagem, e continuamente reinscrita em cada suporte.
MATÉRIA DE FICÇÃO: a infiltração das linguagens


O diálogo entre o cinema e a pintura é antigo. A influência de Edward Hopper, por exemplo, pode ser reconhecida na concepção de atmosfera e luz em obras de diretores como Wim Wenders, David Lynch e Sam Mendes. A solidão arquitetônica de Paris, Texas (1984), o quarto silencioso de Twin Peaks, o subúrbio geometrizado de Beleza Americana (1999) ou de O Homem Sério (2009) são construções que ecoam a visualidade pictórica de Hopper. Outros pintores também deixaram sua marca sobre o cinema: a cena de Monica Vitti no gramado em A Noite (1961), de Antonioni, remete de forma clara à pintura O Mundo de Cristina (1948), de Andrew Wyeth. A luz dramática de Caravaggio encontrou expressão em sequências de O Poderoso Chefão (1972); a serenidade geométrica de Vermeer parece inspirar o uso da luz em Ligações Perigosas (1988), de Stephen Frears.
Por outro lado, há um movimento também na direção inversa. Desde Henri Darger, que entre as décadas de 1910 e 1970 criou suas Vivian Girls, um corpo de imagens e narrativas interligadas — muitas delas acompanhadas de milhares de páginas manuscritas —, a pintura passou a operar como linguagem de construção ficcional.