

Entrevista a Paulo Kohn PhD Department of Media Studies at Wits.
Entrevista a Paulo Kohn PhD Department of Media Studies at Wits.
Paulo Kohn – Em seu trabalho nas artes visuais, você criou o conceito de “conto gráfico expositivo”. Fale-me sobre esse conceito, e sobre seu processo criativo.
Anuk – O conto gráfico expositivo é, no campo das artes visuais, um diálogo entre linguagens. A História Errada é um diálogo entre as artes visuais, literatura e cinema. Esse diálogo está presente em todo o percurso de criação, o que me requer buscar soluções novas, fazer novos aprendizados, fazer os ajustes e testar a operacionalidade das soluções que encontro ao entrecruzar diferentes mídias. Do teclado às tintas, passando pela tesoura, são muitas etapas até o resultado final do conto gráfico expositivo. Mas não existe uma ordem pré-estabelecida no processo, todas as etapas – da escrita, do desenho e da pintura - influenciam-se mutuamente. Posso partir de imagens ou do texto para chegar à pintura. Mas de um jeito ou de outro, a literatura, a fotografia e o cinema se fazem presentes. Para chegar à pintura me lanço em um processo que chamo de “mergulho no silêncio”.
PK – O que é esse “mergulho no silêncio”?
Anuk - Geralmente concebemos o silêncio como ausência de som, mas, nesse caso, é algo diverso: é como devolver às palavras e às imagens a elas relacionadas a possibilidade de produzirem muitos outros sentidos, além daqueles que se apresentam no conto de uma forma mais coesa e mais estruturada. Na passagem do conto à pintura, eu diluo o enredo e a ação em favor de fragmentos que podem trazer pensamentos ou estados de espírito dos personagens ou ainda detalhes de uma cena que não foi mostrada no conto literário.
PK – Sobre o que é a História Errada?
Anuk - História Errada conta a saga de uma mulher para descobrir quem atropelou seu marido e o deixou em coma. As borboletas que insistem em aparecer repetidamente em sua experiência fornecem uma pista misteriosa para ela. Ela busca decifrar esse símbolo através de sua intuição. Sua amiga enfermeira, em contrapartida, é um tipo racional que aconselha a protagonista a deixar de lado sua intuição sobre as borboletas e focar apenas no que é "seguro", o que para ela se traduz em uma espécie de dedução lógica dos acontecimentos que circundam o evento do atropelamento. Acontece que a dedução é falha, pois confia em premissas frágeis. Na história, o engano ronda permanentemente o conhecimento da realidade, e nem a intuição nem a razão livram os personagens de uma leitura equivocada dos fatos. Na história Errada, como na vida, as certezas são muitas vezes frágeis e construídas através de uma apreensão precária e incompleta da realidade. Nesse sentido, o protagonista da exposição História Errada é o próprio expectador e os sentidos que produz a partir de um contexto fragmentado.
PK - Tem alguma razão específica para escolher trabalhar principalmente com filmes e fotografias como ponto de partida para a sua arte? Como é que decide em que cenas e personagens vai se concentrar?
Anuk – Vejo as imagens de filmes como um vocabulário. Eu as uso como um falante usa palavras que estão disponíveis na língua para montar seus próprios textos. Uso as imagens de filmes para criar outras histórias, eu as transformo e insiro em um novo contexto de significação.
PK - Quando escolhe cenas e personagens para a sua arte, procura aquelas que se encaixam de forma coesa no seu enredo, ou procura também aquelas que contrastam ou subvertem as expectativas?
Anuk – Na etapa da pintura, o enredo se dissolve um pouco. A própria montagem da exposição não segue a ordem narrativa do conto ou do conto gráfico. Assim, ainda que seja possível conceber um fio narrativo entre as obras, esse fio é certamente mais transparente e menos visível na pintura do que no conto gráfico ou no conto literário. As imagens de filme podem tanto costurar-se com coesão, quanto podem se desencaixar um pouco. É um equilíbrio delicado. Por um lado, manter a coerência é importante para garantir a compreensão do espetador, mas, por outro, um pouco de elementos contrastantes ou inesperados acrescentam ao conjunto.
PK - Pode dar um exemplo de uma cena onde a coesão em relação à narrativa não esteve presente ou ao menos não foi uma prioridade?
Anuk – Tem uma obra onde há um vaso de plantas no contra-luz e a frase “silêncio das borboletas”. Essa obra não está encadeada no enredo, está ali para trazer a atenção para os vários sentidos que o elemento borboleta têm na História Errada: a borboleta é o elemento de um sonho, é o tema de um ensaio fotográfico, é o elemento sincrônico na experiência da protagonista, é o símbolo de uma marca de um coach, é um adesivo no carro, é um número no jogo do bicho. Enquanto a borboleta permanece sendo representada como borboleta, em cada contexto ela assume um sentido diferente.
PK - Na sua opinião, como pode a arte navegar eficazmente na tensão entre fornecer contexto para a interpretação e deixar espaço para a descoberta pessoal? Como equilibrar a interação entre descoberta e orientação em seus trabalhos?
Anuk – Eu busco oferecer a quem vai à exposição várias portas de acesso. Não importa por qual delas ele resolva entrar, o que importa é que se veja impelido a produzir significado. No caso dos contos gráficos expositivos esse sentido passa muito pela narrativa ficcional. Acredito que a ficção facilita a contextualização de assuntos que podem ser muito abstratos se pensados apenas de forma conceitual. O expectador pode acessar de forma mais subjetiva as imagens e pode racionalizar certos entendimentos também. Acho que as duas camadas acrescentam. Gosto de envolver o expectador em perguntas e reflexões. Procuro encaminhar reflexões e não respostas prontas.
PK - Por que seu interesse pelos romances gráficos?
Anuk - Durante meu mestrado em literatura, meu foco de interesse foram os romances gráficos e o uso da imagem como vocabulário narrativo. Não sou uma típica leitora de histórias em quadrinho. Na infância, como a maioria de nós, fui ávida leitora de Hqs infantis. Mas não leio super-heróis, não me mobiliza. Minha referência estética mais forte no campo dos romances gráficos é o uruguaio Alberto Breccia. Mas há muitas obras que marcaram minha formação de leitora de romances gráficos: Maus, Tangências, Aqui, Campo em Branco, Logicomix, O escultor, A chegada. Esta última, a meu ver, apresenta de forma brilhante um diálogo com o cinema, seja na forma de marcar o tempo seja na composição de planos de cada quadro. Alguns romances gráficos, descolaram-se da submissão ao enredo, mostrando têm estreita relação com as artes visuais e apresentando formas muito diversificadas de trabalhar imagem e texto.
PK - Como você incorpora conceitos filosóficos no seu trabalho visual? Isso se dá através de símbolos específicos, de uma investigação sobre a relação entre forma e conteúdo, ou de um diálogo reflexivo com a história da arte?
Anuk - Os símbolos estão por toda a parte. Das artes à matemática. Na pintura, os símbolos encorpam o tecido de significados disponíveis para além do que é mostrado. Nenhum elemento aparece de forma gratuita ou ocasional nos meus trabalhos. Cada elemento - como a navalha, a maça, o girassol, a lupa, os óculos, a roda da bicicleta, as mariposas na lâmpada, os padrões sem rigor geométrico que figuram em algumas telas, e outros – traz um significado a ser percebido. No caso da História Errada, uma proposta de reflexão sobre o que chamamos racionalidade e intuição, e que equilíbrio reservamos a essas duas portas para o conhecimento.
PK - Você comentou comigo que algumas obras da História Errada fazem referência ao próprio processo de pintar. Poderia me dar um exemplo?
Anuk – Sim, posso lhe dar dois exemplos. Em uma das obras a personagem estica o braço à frente como quem nos oferece uma bebida enquanto diz “fácil entendimento, difícil explicação”. Há nesse aspecto um convite para que o público produza sentido sobre aquela experiência, e que o faça não por meio de conceitos cerebrais ou herméticos, que não vão afetá-lo, mas por meio do próprio jogo de possibilidades narrativas e produção de sentido que se pode experimentar na visita à exposição. A montagem não segue a linha narrativa do conto, justamente para que o conto seja visto como aquilo que ele é: parte do meu processo de criação e pesquisa, e não como uma espécie de “mapa” de acesso a uma única história. Há também um segundo aspecto que busquei simbolizar nessa obra: a personagem está representada como se ondulasse, como se estivesse meio fora de foco; está visualmente multiplicada por três, como se alguém com extrema tonteira a estivesse olhando. Há várias formas de representar o movimento na pintura e todos demandam a imaginação do espectador. No cinema, igualmente imaginamos o movimento, por uma sucessão veloz de imagens ligadas por um tempo muito curto de intervalo. Mas como trazer isso para a pintura? Courbet fez isso em 1855, com O Ateliê do Artista. Muitos outros artistas também fizeram. Na história Errada, a percepção de movimento em verdade está nos olhos do observador, e não na imagem em si. Na história, esse observador é o coach, na exposição, o observador somos nós.
O segundo exemplo de comentário metalinguístico que eu daria é a obra “vemos o que queremos ver”. Nela, um personagem semicerra os olhos e delimita com os dedos seu campo de visão. O recurso de semicerrar os olhos é comum na pintura para facilitar a percepção dos contrates, das manchas; isso permite que se veja o todo, sem se fixar nos detalhes. Mas há também no gesto de delimitar o próprio campo de visão um segundo comentário que se refere à ideia de que conhecer é editar, conhecer é selecionar. E, nesse processo, muitas vezes sem perceber, olhamos para o todo em detrimento do detalhe. Esse recurso que é praticamente um condicionamento do ser urbano não deixa de ser uma estratégia de sobrevivência, mas, por outro lado, nos priva de perceber detalhes significativos da realidade.
PK – Com relação à presença da narrativa em seu trabalho, como você vê esse elemento em diálogo com as artes visuais?
Anuk - A narrativa é uma consequência natural da minha trajetória multidisciplinar e do diálogo que estabeleço entre artes visuais e outras linguagens, como a literatura e cinema. Meu trabalho assimila alguns procedimentos da arte contemporânea como a colagem, a impressão, e outras midias tecnológicas modernas. Problematiza a ausência de sentido ou a banalização dos sentidos, em certa medida, como fez o pop ao problematizar a cultura de consumo. A cultura de consumo trouxe a reboque essa banalização dos sentidos, a meu ver.
Desde meu mestrado em literatura, onde me concentrei em romances gráficos, fui influenciada por obras que transcendem a narrativa convencional. O uruguaio Alberto Breccia é uma figura central nesse aspecto, com sua habilidade de fundir imagem e texto de maneira inovadora, pelo uso de colagem e contrastes de luz marcantes. Alex Katz e Richard Estes também inspiram meu estilo visual através de suas representações estilizadas da realidade humana. Suas técnicas de composição e uso da luz influenciam diretamente minha busca por enquadramentos cinematográficos e exploração das relações entre figura e ambiente. No campo dos romances gráficos, obras como "A Chegada" de Shaun Tan, e outros como "Maus", "Tangências" e "O Escultor" ampliaram minha visão sobre a interação entre imagem e texto, destacando-se pela complexidade narrativa e pela rica fusão de linguagens visuais e literárias.
No cinema, Mario Peixoto é uma referência especialmente importante para mim. Ampliou meu interesse por uma narrativa fragmentada, rica em simbologias, onde cada elemento ecoa o outro, com harmonia, instigando o observador a encontrar sua própria narrativa.